Thursday, February 21, 2008

Penélope no elevador
Fui visitar Luis pela manhã. Era mais um dia desses brancos muito claros aqui de São Paulo, quando não se vê sequer um pedaço de azul no céu, com uma temperatura amena e sem vento. Tive dificuldade em abrir os olhos ao sair de casa. Andei as três quadras que separam nossas casas, passando pela Praça Roosevelt, mais uma vez me esquecendo que quase ela toda está tomada por cheiro de urina e por isso andei na ponta dos pés, de nojo. Como todos os dias, estavam os funcionários dos teatros da praça lavando as calçadas, a senhora da banca de bugigangas e o senhor da banca de frutas esperando clientes, e juntos com as árvores adornadas de fitas de um papel laminado dão alguma cor à rua estreita, bastante sombreada e úmida. Cheguei ao prédio, passei pela portaria, dando passagem a um homem que empurrava um carrinho de bebê, com quem dividi a viagem de elevador, afinal são vinte e quatro andares.
Acendeu-se uma curiosidade em mim de olhar para o interior do carrinho. Lá estava um garotinho de menos de um ano, branco, com aquelas formas rechonchudas que são típicas de várias crianças dessa idade. Seus olhos eram muito grandes, e vivos, de um verde muito profundo, vítreo. Estava ele muito calmo e a fisionomia em torno daqueles olhos era estranhamente bem assentada, com linhas harmoniosas conferindo-lhe um ar adulto. Sobre o olho direito, na pálpebra, no canto junto ao nariz, chamava a atenção uma mancha vermelha escura, de formato irregular com linhas fortes, contrastante com a cor da pele. Reconhecendo minha presença ali, creio que se reservou ao direito de me fitar igualmente, e assim ficamos os dois por uns três segundos, que pareceram durar mais. Saí do elevador no vigésimo quarto, saudando o garotinho e seu pai.

Coloquei-me a pensar sobre a presença da mancha em sua vida. Primeiramente senti-me idiota em achar a coisa toda poética. Senti-me cruel em seguida por pensar ser natural e necessário que todos por aqui tenham suas chagas, mesmo um ser tão lindo e delicado, como se todos que vivem nessa cidade tivessem que compor uma rede cujos nós são as adversidades, o controverso, fazendo da criança uma vítima de minha percepção e julgamento. Percebi que me submeto a essa idéia desde que me mudei pra cá, percrustando meus atos e pensamentos buscando minhas marcas, algumas vezes atingindo-as para fazê-las aparecerem, para senti-las, isso se não as provoco. Penso que não tê-las é impossível, e que se não as vemos, somos hipócritas, ou limitados. Cheguei ao Luis, que me disse conhecer o garotinho, e parece que a mancha vai sair com o tempo.